“CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. CONTRATAÇÃO POR MEIO TELEMÁTICO. PRÉ-CONTRATAÇÃO EFETUADA POR TERCEIROS. PONDERAÇÃO ENTRE OS PRINCÍPIOS DO ACESSO À JUSTIÇA E DA AMPLA DEFESA. ART. 651 DA CLT. AMOSTRA FRAGMENTÁRIA DA REALIDADE SOCIAL. TECNOLOGIAS DISRUPTIVAS. INAPLICABILIDADE DA REGRA GERAL.

I. As normas de Processo do Trabalho positivadas na Consolidação das Leis do Trabalho, como toda e qualquer norma jurídica, devem ter em conta a ambiência e os dados reais do mundo, a fim de que não se mostrem insuficientes como instrumentos de operacionalização do direito por evidente descompasso ou não aderência à realidade fenomênica atual. O avanço tecnológico, as empresas virtuais, o trabalho sob demanda, a inteligência artificial, enfim a conjuntura disruptiva de certo ocasiona hodiernas vicissitudes no mundo do trabalho, refletindo nas demandas materialmente afetas à competência desta Justiça Especial, fazendo surgir para além das lacunas normativas, lacunas ontológicas e axiológicas. O direito tem o dever de acompanhar a modernização do modo de vida, decorrente da tecnologia, onde relações de trabalho são forjadas de maneira virtual a demonstrar que o foco da era moderna vem ganhando um redimensionamento, no qual se observa que a pessoalidade como elemento decisivo do contrato cede espaço para o objeto do contrato.

II. Ora, se no campo do direito do trabalho o conceito de espaço e de tempo à disposição do empregador demanda novos significados, também haveria de se exigir no campo do direito processual uma nova compreensão do que seria local de trabalho, local da contratação ou mesmo local da prestação de serviços. Por esta razão, nos casos em que o postulado do acesso à justiça se mostra ameaçado em decorrência do custo econômico que recai sobre o demandante para ter a devida prestação jurisdicional por órgão cuja localidade distancia-se em muito de seu próprio domicílio, há registros doutrinários e jurisprudenciais no sentido de se excepcionar as regras objetivamente previstas no art. 651 caput e §3º da CLT, permitindo ao trabalhador demandar no juízo de seu domicílio.

III. Nesses casos, há necessidade de adequação e de ponderação entre os princípios do acesso à justiça e da ampla defesa, normas fundantes da Constituição para permitir-lhes a compatibilidade sistêmica.

IV. A melhor solução é aquela que otimizará o princípio do efetivo acesso à justiça, sem a necessidade de afastar o princípio do contraditório e da ampla defesa, pois ao se garantir o acesso efetivo à justiça, não se estará, necessariamente, no caso em exame, conferindo peso menor ao princípio do contraditório, mas apenas reafirmando que a decisão, como posta, realizará a norma principiológica na maior medida possível (mandamento de otimização).

V. No caso concreto, extrai-se dos autos as seguintes informações incontroversas: (a) o reclamante, mesmo antes da contratação e após o fim do vínculo trabalhista, residia em Goiás; (b) o reclamante foi contratado por meios telemáticos, através de sítio eletrônico de intermediação de pré-contratação; (c) o reclamante fez os exames admissionais em Taguatinga-DF; (d) o contrato de trabalho foi efetivamente firmado em Recife/PE; (e) o reclamante prestou serviços de Técnico de Manutenção Hospitalar; e (f) a prestação de serviços ocorreu no município de Santa Cruz/RN, cuja jurisdição está abrangida pela comarca de Currais Novos/RN.

VI. Demonstra-se, pois, insuficiente o exame da competência territorial pela interpretação literal do art. 651 da CLT, ainda a seleção de empregados por meios telemáticos reduz custos e amplia a área de atuação na captação de mão-de-obra específica para todo o território nacional ou mesmo para além de nossas fronteiras. Nesse quadrante, impende ao intérprete da norma ressignificá-la face à amplitude fenomênica responsável pela mutação do resultado do processo hermenêutico que deságua na norma. Evidencia-se, portanto, que, se a boa interpretação da norma perpassa pela inserção do intérprete no mundo e na percepção, o tanto quanto possível, da realidade que o permeia, à luz do princípio da razoabilidade na ponderação entre os postulados do acesso à justiça e da ampla defesa, a declaração da competência territorial da 7ª Vara do Trabalho de Brasília-DF é medida que se impõe. Isso porque, ao assim decidir, otimiza-se o acesso à Jurisdição para o trabalhador, diante do custo elevado que, de certo, viria pelo seu necessário deslocamento e eventual permanência à localidade sobremaneira distante de seu domicílio, sem que tal represente para o demandado barreira significativa à ampla defesa e ao contraditório. Afinal, não é razoável condicionar o exercício do direito de ação do empregado contratado por meios telemáticos, que realizou exames admissionais em Taguatinga/DF, firmou contrato em Recife/PE e prestou serviços em Santa Cruz/RN, ao deslocamento de centenas de quilômetros até a comarca de Currais Novos/RN.

VII . Conflito de competência admitido para declarar competente o Juízo da 7ª Vara do Trabalho de Brasília-DF, suscitada, para proceder no processamento e julgamento do feito”.

(CCCiv-232-81.2019.5.21.0019, Subseção II Especializada em Dissídios Individuais, Relator Ministro Evandro Pereira Valadao Lopes, DEJT 18/12/2020, destaquei).

Esta não é a primeira vez que abordamos, aqui, a temática da competência em razão do lugar. Em outra oportunidade, também comentamos um julgado recente da Subseção I em Especializada em Dissídios Individuais do Tribunal Superior do Trabalho, no qual foi discutida a melhor interpretação a ser dada ao artigo 651 da CLT.

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Naquela oportunidade, o julgamento se deu em sede de Embargos em Recurso de Revista, tratando-se de caso em que o reclamante ajuizou a ação em Comarca do seu domicílio (Cratéus/CE), mesmo tendo sido contratado e prestado serviços em outra Comarca (São Luis/ME) e, ainda, em local diverso da sede da empresa (Taboão da Serra/SP).

Ao final, a SDI-1 do TST, revisitando a tese fixada nos autos do processo E-ED-RR-278-87.2015.5.20.0003 (DEJT 02/08/2019), reforçou ser possível o reclamante ajuizar a ação trabalhista no foro do seu domicílio, mesmo não tendo sido contratado nem prestado serviços nessa localidade, desde que a empresa atue em âmbito nacional, referindo-se a uma “aplicação ampliativa” do § 3º do artigo 651 da CLT.

Por sua vez, o caso que trazemos para análise neste momento trata-se de julgamento proferido pela SDI-2 do TST, em sede de Conflito de Competência. Conforme os fatos constantes do item V da ementa acima transcrita: o reclamante, pré-contratado por meios telemáticos (e por terceiros) em Taguatinga/DF (onde realizou exames admissionais, inclusive), teve a sua contratação efetivada em Recife/PE e prestou serviços em Santa Cruz/RN (jurisdição abrangida pela comarca de Currais Novos/RN), após o que retornou para o Estado de Goiás, onde possui residência. Ao final, decidiu ajuizar a ação trabalhista na Comarca de Brasília/DF.

O Conflito de Competência foi instaurado pela Vara do Trabalho de Currais Novos/RN, tendo sido julgado mediante ponderação dos princípios do efetivo acesso à justiça e da ampla defesa (artigo 5º, incisos XXXV e LV, da CF) – assim como já se vem decidindo há algum tempo; e, aqui, os pontos centrais são: (i) as modificações que o avanço da tecnologia vem acarretando aos conceitos de local de contratação, local de trabalho e local de prestação de serviços; (ii) os custos que seriam exigidos do reclamante para o ajuizamento da ação no efetivo local de prestação de serviços; e (iii) a ausência de prejuízo ao exercício de defesa por ambas as partes.

Inclusive, um dos fundamentos utilizados é o Enunciado nº 7 da I Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho, que assim dispõe:

Acesso à justiça. CLT, art. 651, §3º. Interpretação conforme a Constituição. Art. 5º, XXXV, da Constituição da República. Em se tratando de empregador que arregimente empregado domiciliado em outro município ou outro Estado da federação, poderá o trabalhador optar por ingressar com a reclamatória na Vara do Trabalho de seu domicílio, na do local da contratação ou na do local da prestação de serviços.” (destaquei)

Ao que parece, trata-se de um novo posicionamento da SDI-2, pois admitido o ajuizamento da ação trabalhista em local distinto do domicílio do empregado, do da sua contratação e do da prestação de serviços – e isso sem a constatação do fato de o empregador possuir atuação em âmbito nacional, hipótese excepcional admitida, pelas SDI´s do TST, como fator de flexibilização da interpretação do artigo 651 da CLT.

Ainda que a SDI-2, no julgado que ora comentamos, fundamente que “a seleção de empregados por meios telemáticos reduz custos e amplia a área de atuação na captação de mão-de-obra específica para todo o território nacional ou mesmo para além de nossas fronteiras”, não parece ser esse o sentido do § 3º do artigo 651 da CLT, ainda que se adote uma interpretação mais atualizada dele, em conformidade com a atual realidade tecnológica. O dispositivo fala em a empresa promover a realização das suas atividades fora do lugar do contrato de trabalho, o que não se confunde com mera pré-contratação por meios telemáticos.

E um detalhe: pelo que se extrai do julgado, acabou prevalecendo a competência territorial de uma Comarca estranha a todo histórico da relação havida entre as partes da ação trabalhista: Brasília/DF. O próprio acórdão admite que a pré-contratação teria ocorrido em Taguatinga/DF, município que conta com cinco Varas do Trabalho.

Não obstante esses pontos críticos, trata-se de entendimento adotado por uma Seção Especializada do Tribunal Superior do Trabalho, podendo ser invocado por outros reclamantes que se encontrem em situação idêntica ou semelhante.

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